O INFERNO EXISTENCIAL



Raríssimos filmes – talvez nenhum – conseguem causar um sentimento tão ambíguo na alma como Réquiem para um Sonho. O telespectador que assistiu o filme desavisado, pensando em entretenimento, em diversão, deve ter saído perturbado, enojado, sem saber se com o filme ou consigo mesmo, travado, como se estivesse a beira de um ataque nervos. Outros devem ter saído totalmente revoltados contra o diretor por haverem sido submetidos a uma brincadeira macabra, uma brincadeira, no mínimo, de muito mau gosto, com coisas que todos consideramos sagradas. A sensação que tiveram, talvez, foi a mesma que eu tive: “não achei graça nenhuma” ou “com essas coisas não se brinca”. O cerne no entanto é exatamente esse: o diretor não estava brincando. Não estava fazendo entretenimento. Ele estava falando sério, e muito. E esse é o golpe preciso que atravessa a medula espinhal do telespectador. Ele sabe que não é ficção; é a realidade. A realidade que está continuamente diante dos olhos de Deus.
A ambigüidade de assistir esse filme se manifesta sobretudo na reação que causa nas pessoas – um filme fantástico, uma obra prima, mas que todos sentem repulsa, que ninguém ousa em assistir uma segunda vez. Réquiem para um sonho é um filme perturbador.

O filme apresenta a dura realidade dos viciados em todos os níveis, mas não só isso. Ele concentra a atenção na fuga. Fuga da realidade. Todos os personagens tinham alguma questão não resolvida. Uma realidade com a qual tinham de conviver. Um passado que os assombrava. Marion, a linda e rica moça que procurava desesperadamente pelo amor que não recebera de seus pais; Tyron, com seu problema de infância, a mãe que ele não esquecia, que via em flashs no espelho, na cama, a quem amava e se encontrava nos sonhos, mas que jamais encontraria na vida real; e Harry e sua mãe que se adaptaram, cada um a sua maneira, a morte do pai/marido; ele refugiando-se nas drogas, e ela na televisão e na comida. Esta era a história dos personagens, e que o diretor muito sutilmente apresenta apenas com recortes, frases isoladas e rápidos flashs. A triste realidade de sofrimento, de inacabamento que todo ser humano enfrenta podia ser sentido naquelas quatro pessoas. Realidade que poderia leva-los por dois caminhos antagônicos: o enfrentamento ou a fuga. O destino deles foi a fuga. O diretor, porém, não demonstra ter a mínima misericórdia do telespectador – pelo contrário, parece querer mesmo jogar na cara dele – quando apresenta estes viciados como pessoas, como gente de carne osso, como qualquer um de nós, com sonhos, aspirações, desejos, com fome de viver, mas que gradativamente mergulham num profundo abismo, no inexorável, num inferno existencial cujos demônios não são seres incorpóreos, mas os próprios semelhantes, os próprios seres humanos que nos rodeiam todos os dias.

Mas o diretor também é implacável na sua leitura do ser humano. O ser humano não é apenas um ser frágil, que é facilmente atingido pela tragédia e pela dor, que o faz fugir para um lugar de alívio, ainda que ilusório. O ser humano é também o aproveitador, aquele que explora esta condição lamentável de miséria que o outro pode chegar. Os médicos (ou por extensão toda a indústria da medicina) completamente insensíveis, pedrados, que atendiam a velha Sara sem sequer olharem em sua face, que garantiam seus lucros às custas da desgraça existencial da pobre viúva; o apresentador de TV (e por extensão os programas televisivos), que se alimentava das ilusões das pessoas usando técnicas de manipulação psicológica, patrocinando e incentivando a fuga da realidade. E, por fim, os traficantes, os devoradores de alma, os comerciantes do sexo, os depravados, que exploravam a triste situação de desespero dos jovens viciados para terminarem por arrancar a última gota de dignidade que ainda lhes restava na alma, em troca de uma noite de diversão.

Sem dúvida há pessoas que vivem da desgraça, da ruína, da destruição dos sonhos alheios. Sem dúvida existe um inferno para estes demônios, para estes que patrocinaram o inferno na vida de muitos outros aqui na terra.

Enfim, Réquiem para um Sonho expõem com toda crueza possível aquilo que não é incomum, mas que é camuflado, que é dissimulado, é escondido, para que a humanidade se convença que funcionou. Para que a humanidade se convença que “deu certo”, que está indo bem. Réquiem expõe a humanidade despida, sem maquiagem, mostrando toda a sua podridão e seu desespero interno, e mostrando que se engana quem acha que tudo vai bem. Engana-se quem acha que a humanidade não precisa de Redenção.

Um comentário:

André disse...

Filme brilhante e chocante!! em certos momentos repugnante!!