QUANDO PREFERIMOS A INCOERÊNCIA

Dois policiais abordam um casal de negros ricos numa caminhonete de luxo. Um dos oficiais, o mais velho, tem uma história com os negros que o telespectador desconhece por completo. Numa época em que o racismo imperava nos EUA o seu pai havia dado emprego digno a muitos negros, tratando-os verdadeiramente como seres humanos, e exatamente por essa causa havia perdido tudo o que tinha. Agora, muito tempo depois, sofria com uma infecção urinária que não se curava porque a encarregada do plano de saúde - uma negra! - se recusava a liberar os exames necessários para a sua recuperação. Essa história devia estar corroendo o interior do policial enquanto ele fazia aquela abordagem de rotina. Então ele manda o homem descer do carro. A mulher, esnobe, aparentemente embriagada, começar a desdenhar e provocar o policial por submetê-los a aquele procedimento. Irritado, o homem da lei dá voz de prisão ao casal efetua uma revista abusiva na mulher sob as vistas do marido que tentava, sem sucesso, controlá-la.

A genialidade dessa cena se mostra sobretudo nisso: o telespectador não conhece a história do policial, a sua relação com o pai, a sua revolta circunstancial contra os negros. Não conhece a pressão a que ele estava submetido, as noites em claro ajudando o seu pai, o seu desespero diante daquela situação, e a repressão da sua revolta, como se fosse um balão inflando quase a ponto de explodir. O telespectador ignora tudo isso e é simplesmente exposto a esta cena sórdida, logo no início do filme, sem outras bases nas quais se apoiar. E assim, o diretor nos força a cometer a injustiça brutal: determinamos em nossa mente que o policial mais velho é necessariamente racista, e por extensão também deve ser corrupto, um mau filho, um mau policial, em suma, um ser humano desprezível. Da mesma forma determinamos em nossa mente que o policial mais novo, por ter reprovado aquele ato do colega, é necessariamente um bom policial, integro, ético, correto, etc. Uma cena (apenas isso!) foi o suficiente para balizar o nosso julgamento e a nossa sentença sobre a índole dos dois personagens, a despeito de tudo o que desconhecemos acerca deles. Está estabelecido o tema do "pré-conceito": conceito construído a priori; conceito construído sem uma base sólida; conceito construído antes de se ter um conhecimento real das coisas; conceito construído em cima de suposições, de pré-julgamentos, escassez de informações.

Dentre outras coisas esse filme me revelou o seguinte: os preconceitos nos deixam cegos para a verdade. É evidente que o policial cometeu um erro. Não é essa a questão. A questão é que todo o resto do filme - para nossa grande surpresa - revela o contrário daquilo que vimos no início. O valor do policial mais velho, e o caráter dúbio do policial mais novo. Porém, independente do que é mostrado cena-após-cena continuamos firme no nosso designio, naquilo que pré-concebemos logo de início, e mesmo quando o nosso conceito construído sobre a índole de cada personagem se "choca" com a realidade, se despedaça na nossa frente, permanecemos firme na nossa resolução injusta. Terminamos o filme confusos, e não é de se estranhar: preferimos a incoerência à rever os nossos próprios conceitos.

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