A HISTÓRIA É ESCRITA COM SANGUE


Um filme que possui uma mensagem pungente. A história de uma terra, de uma nação. Uma história. No sentido quase incompreensível da palavra. Aquilo que a maioria dos que dela participam não se dão conta de que fazem parte. Aquela era a história da China. Mas poderia ser a minha, a sua, ou de qualquer um.

Um guerreiro chamado Sem Nome se apresenta perante o rei Qin, chefe do Império Chinês, como recompensa por ter matado os maiores assassinos de sua época, que outrora já haviam atentado contra a vida do próprio rei: Espada Quebrada, Céu, e Neve Voadora. Mas o rei ignora que Sem Nome também é um assassino disfarçado. Ele havia articulado um plano maquiavélico com outros assassinos para ficar a 10 passos do rei, quando teria a capacidade de matá-lo, mesmo sem arma alguma. Mas para chegar tão próximo ele precisaria, antes, explicar ao rei de que maneira havia matado os tão temidos assassinos, que eram espadachins inigualáveis, praticamente imbatíveis. Ele deveria convencer o rei de que realmente os havia derrotado. Então, num diálogo em que verdade e mentira se misturavam, o rei procurou encontrar a verdade na história que o guerreiro Sem Nome contava, filtrando o que lhe parecia provável ou improvável, coerente e incoerente, num jogo que mais parecia uma tradição milenar.

O rei encontrou a verdade.

Então, eu, telespectador, comecei também a enxergar. Enxergar que todas as histórias são verdadeiras. Basta sabermos encontrar o que é construção psicológica da pessoa que a conta, o que são os nossos próprios preconceitos, e o que, de fato, é um fato.

Eis a verdade: Para aperfeiçoar a sua técnica na espada, Espada Quebrada passou a estudar caligrafia. E estudando caligrafia sua técnica se aperfeiçoou a um nível muito elevado. Percebeu, então, que naquela etapa do seu treinamento nada poderia impedi-lo de matar o rei inimigo. Então, no auge do seu treinamento, Espada Quebrada invadiu o palácio real, defrontando-se com milhares de soldados e derrotando-os facilmente. Invadiu os aposentos reais. Ninguém era capaz de detê-lo. Ninguém era capaz de derrotá-lo. Não haveria escapatória para o rei. Então, diante do rei, frações de segundo antes de matá-lo, ele atinge o ideal máximo do guerreiro - e não mata o monarca.

Por que ele não matou o rei? Foram décadas de treinamento exaustivo para aquele tão esperado dia. Por que ele desistiu? Ninguém entendia a razão. Nem o rei, nem seus companheiros, nem mesmo a sua amada, que depois desse dia passou a ignorá-lo.

Espada Quebrada atingiu o ideal máximo do guerreiro. Como ele conseguiu isso? Estudando caligrafia.

Isso por si só já é uma mensagem. Não foi treinando sua esgrima que ele chegou no grau máximo, foi estudando caligrafia. Isso guarda um grande segredo: Tudo tem haver com tudo. Qualquer atividade desenvolvida ao grau máximo de perfeição nos leva a um estado de percepção mais elevado, mas que não se manifesta enquanto esta atividade for um fim em si mesma; ela deve ser apenas e sempre o meio. Em outras palavras, a perfeição de uma atividade não nos levará ao nível da iluminação a não ser que outras atividades aparentemente sem relação nenhuma com aquela sejam consideradas como uma extensão dela. É assim que o guerreiro se limita: quando ele acha que o seu treinamento tem haver apenas com espadas e lutas, e a evolução da sua técnica está limitada a aquilo que ele entende como fazendo parte da arte que pratica.

O segredo de Espada Quebrada estava na sua caligrafia. Então era ali que o rei deveria procurar uma resposta. Então, olhando atentamente para os perfeitos caracteres desenhados pelo grande guerreiro no papel o rei o compreende. Exerga a alma de Espada Quebrada. No primeiro estágio o guerreiro entra em sintonia com o ambiente a sua volta. Tudo, seu punho, sua roupa, seu cabelo, o ar, a água, tornam-se potencialmente uma arma mortal. No segundo estágio, o guerreiro e espada tornam-se um. A espada torna-se uma extensão de seu próprio corpo. No terceiro estágio a espada desaparece. Simplesmente não existe mais. O desejo de matar cessa e só resta a paz. Quando se encontra um ideal supremo, aquilo que os filósofos chamam de Verdade, outros de Iluminação, outros Salvação; a espada não é mais uma arma; nem tão pouco parte de você; ela simplesmente desaparece. Restam apenas as palavras. Começa-se a enxergar claramente a tolice. Começa-se a enxergar o real problema.

“Nossa Terra”. Foram as últimas palavras de Espada Quebrada proferidas ao guerreiro Sem Nome para tentar convencê-lo a não matar o rei. Diante dessa verdade esmagadora, dessa iluminação que ele teve, dessa única e clara possibilidade de salvação para o seu povo, ele percebe que tudo se tratava de “ver”. As pessoas tem que “ver”. “A iluminação é um ponto de vista”, disse Buda. A paz é a conseqüência do “ver” que hoje está se fazendo história. Mas, que história se está construindo? Quando se atinge o estágio máximo abraça-se o sofrimento com coragem e a morte com brandura, pois são com eles que a história é escrita. Exclusivamente com líquidos: suor, sangue e lágrimas. É com o meu sofrimento e principalmente com a minha morte que a história será escrita. E se a minha vida não servir para alterar nada neste mundo, não terá tido sentido.

E assim, Espada Quebrada deixou o mundo dos vivos para se tornar história, e para que as suas duas palavras, escritas na areia, brevemente apagadas pelo vento, ficassem gravadas para sempre no imaginário daquele povo. “Nossa Terra”. As palavras por meio das quais a China, até hoje, mais de 2000 anos depois, ainda é chamada pelos seus habitantes.

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