A HUMANIZAÇÃO DO HOMEM


O mundo em que vivemos hoje foi construído em cima de ruínas de civilizações inteiras. Muito sangue inocente foi derramado. Povos foram extintos. Nações foram diluídas nos interesses políticos e econômicos corrompidos pela doença da ganância e do poder. A Missão é um filme que revela isso como nenhum outro. Ambientado no século XVIII, a película retrata a guerra estabelecida por portugueses e espanhóis contra jesuítas idealistas que evangelizavam os índios nos Sete Povos das Missões, na América do Sul. Dentro desse contexto histórico surge o protagonista do filme, um violento mercador de escravos indígenas (Robert de Niro), que arrependido pelo assassinato de seu irmão, realiza uma peregrinação de auto-penitencia pelos Sete Povos, juntamente com aquele que outrora fora um dos seus principais antagonistas: um consagrado líder jesuíta chamado Gabriel (Jeremy Irons). Em sua jornada, o antigo mercador descobre um significado maior para sua vida, e uma oportunidade de perdão. O destino daquelas comunidades indígenas, contudo, já havia sido decretado, e aqueles dois homens decidem dar a vida por aquilo em que acreditam.

Diante dessa história comovente não posso deixar de refletir acerca desse projeto o qual chamamos humanidade. Será que ainda restou uma gota daquilo que nos fazia humanos? Matamos, roubamos, violentamos, exploramos, destruímos, e, pior, legitimamos tudo o que fazemos com uma retórica rebuscada e meia dúzia de palavras bem escolhidas. A humanidade, o dom que nos foi dado, o dom com o qual nascemos, se esfarelou ao longo da estrada do tempo. "O mundo é assim mesmo", dirão alguns ainda se recusando a refletir sobre tudo isso. Mas no fim do filme essa pergunta é respondida. Um cardeal, que havia consentido na destruição daqueles povos, é pego refletindo sobre suas próprias crenças e valores quando um tal senhor Hunter lhe faz esta mesma afirmação: "O mundo é assim mesmo". Com pesar o cardeal responde com uma voz embargada: “Não senhor Hunter. O mundo não é assim. Nós o fizemos assim. Eu o fiz assim”.

Embora grande parte das pessoas hoje sejam afiadas para denunciar as discrepâncias do mundo, poucas são capazes de reconhecer a sua própria responsabilidade nesta situação. No fundo pouquíssimas pessoas estariam verdadeiramente dispostas a abrir mão do seu conforto e comodidade em prol da vida humana. Pouquíssimos abririam mão da sua energia elétrica, do seu automóvel, do seu aquecedor a gás, seu telefone, ou de uma infinidade de outros objetos tecnológicos ou não, que constituem o fundamento da nossa sociedade, e que foram desenvolvidos as custas de muito sangue e destruição no passado. É muito fácil para nós desaprovarmos hoje o que foi feito no passado quando usufruímos sem pudor de tudo aquilo que eles até mataram para construir. Mas não estou pregando contra o progresso aqui. Também não estou propondo uma alternativa para o mundo. Estou pregando sim contra as pessoas que balançam a cabeça para aqueles que cometeram estes pecados no passado, achando-se melhores do que eles. A mesma coisa que foi feita pelos Fariseus na época de Cristo, quando disseram: "se estivessemos vivos no tempo de nossos pais jamais teríamos sido cúmplices seus no derramamento de sangue dos profetas..." (Mt 23). No fim eles acabaram por assassinar o maior dos profetas, o próprio Filho de Deus. Sim, não somos melhores do que aquele cardeal.

Depois de refletir sobre este filme não consigo deixar de pensar num verso de Graham Greene: "Ser humano também é um dever". Este verso, embora pequeno, expressa uma grande síntese."Humano" não é apenas uma característica com a qual todos nascemos. É também um dever. É um alvo a ser atingido. Com destreza magnifica este gigante da literatura ressalta a responsabilidade de todos nós ao transformar em "objetivo" aquilo que diríamos que é inevitável como ponto de partida:

"Nascemos humanos, mas isso não basta: temos também que chegar a sê-lo”.

Nenhum comentário: