O Gladiador e a Graça

O apostolo João, na sua epístola, desfere a curta e objetiva sentença a seguir: “Deus é amor”. Ele define Deus como amor. O amor e a Graça de Deus não são meros títulos divinos em virtude de algumas ações isoladas que ele realizou; A Graça e o Amor fazem parte da própria natureza divina.

Isso faz me lembrar de um filme: “O Gladiador”.Os Gladiadores na Roma antiga eram obrigados a lutar até a morte numa arena, como entretenimento para o público. Era a famosa política romana do “Pão e Circo”. Tragicamente o povo entendia estes combates sangrentos como diversão. Pois bem, no filme o personagem principal Antonio Máximus, ex-general do imperador romano recém falecido é perseguido pelo sucessor ao trono para ocultar uma conspiração que levou ao assassinato do próprio rei. Como consequência, o estimado general acaba se tornando, contra a sua vontade, um Gladiador. Contudo, a sua postura na arena deixa irritados os organizadores do evento. Maximus começa a não matar os seus adversários. Então, contra as expectativas dos organizadores, a multidão sedenta por sangue não se revolta, mas começa a exaltar o Gladiador aclamando-o de Misericordioso!

O que é interessante e até certo ponto engraçado nesse fato é que alguém pode ser conhecido e louvado como misericordioso sem realmente ser. Existem inúmeras razões para não matar. Mas independente da razão porque alguém não mata este pode continuar sendo reconhecido como misericordioso. Neste caso, ele é chamado de misericordioso porque não mata; e não, necessariamente, não mata porque é misericordioso. A virtude, todavia, só existe no segundo caso – Ele não mata justamente por causa da sua misericordia. A sua ação emana da sua essencia, e não a sua essencia é inferida da sua ação. A causa dele não matar é a sua misericordia, e não a causa dele ser chamado de misericordioso é o fato dele não matar.

Isso nos remete a uma situação muito parecida quando falamos da Graça, do Amor e da Misericórdia de Deus. Podemos dizer, como muitos dizem, que Deus é misericordioso porque ele não nos matou, não nos condenou, ou não nos deu o que merecíamos. No entanto, isso é um equivoco. A causa Dele receber o título de Misericordioso não é o fato de não nos matar; pelo contrário: a causa Dele não nos matar é a sua Misericordia. Deus não é misericordioso e gracioso porque não nos matou; ele não nos matou justamente porque é misericordioso e gracioso. A Graça, a Misericordia, o Amor fazem parte da Natureza de Deus, da essencia divina. Não são apenas títulos inferidos de algumas ações isoladas no tempo e no espaço.

Como a multidão romana nas arenas dos Gladiadores, muitos cristãos hoje chamam Deus de Gracioso, e o louvam como Gracioso por não ter-lhes aniquilado. Escapa-lhes, contudo, a verdadeira razão: Deus não é Gracioso porque ele nos Salvou; ele nos salvou porque é Gracioso. Escapa-lhes a simples revelação do apóstolo João: “Deus é amor”.

O SILÊNCIO DE DEUS


O contexto do filme é apocalíptico. Daí o título da película, tirado do apocalipse. As pessoas temem o fim do mundo, diante da peste negra que assola a Europa. O juízo final é iminente. Antonius Block, o protagonista, é um cavaleiro sueco, sóbrio e racional, que, seguindo a mentalidade religiosa da sua época, se lança em direção à Cidade Santa, nas peregrinações sagradas das Cruzadas cristãs, na esperança encontrar respostas para suas indagações existenciais. Durante as peregrinações vê o lado tenebroso da religião, que não é mais do que o lado tenebroso do próprio homem, embebido pela sua ganância, embriagado por si mesmo, promovendo o terror, a injustiça, a hipocrisia e a maldade por onde passam, e tudo em nome de Deus.

De imediato percebemos que Block é diferente. Ele não ingressou nas Cruzadas atrás de riquezas ou aventura, como muitos outros. Ele foi atrás de respostas. Queria compreender o propósito da vida, saber porque e para que existia, queria achar algum sentido na sua vida, que lhe parecia tão sem significado; queria achar o sentido de todo o sofrimento e das injustiças que o rodeavam por todos os lados, queria compreender o mistério divino. Porém, retorna frustrado. Não consegue qualquer resposta. Não encontra explicações. Volta sem perspectivas. Anos de peregrinação para então descobrir apenas uma única verdade: que a religião não passava da mais pura encarnação da hipocrisia e da mentira. Não havia nada ali além do vazio.

Desolado, o cavaleiro percebe que não há mais o que fazer. A peregrinação para a Cidade Santa era a sua última tentativa, e nada obtivera. Restava agora apenas esperar a morte, que certamente viria buscá-lo, mais cedo ou mais tarde. No entanto, apesar tudo, ele ainda encontra uma última alternativa. A mais perigosa, que sem dúvida lhe custaria a própria vida. Mas ele não está preocupado com o preço a ser pago. Ele quer respostas. Sua última tentativa envolveria a própria Morte. E ele está esperando por ela.

É assim que começa a obra prima de Bergman: um cavaleiro, solitário, à beira do mar, descansa de sua longa viagem, quando surge um personagem enigmático de rosto esbranquiçado e longa capa preta. É a morte. A objetividade Ingmar Bergman assusta logo de cara. Já nos primeiros segundos do filme o diretor revela toda a trama, sem qualquer embaraço ou cerimônia. Um homem está na beira da praia e a morte se apresenta a ele dizendo que a sua hora chegou. Então o cavaleiro desafia a Morte para uma partida de xadrez, cuja derrota lhe custaria a própria vida.

Aqui já é preciso parar para refletir sobre a profundidade filosófica dessa magnífica metáfora do mestre do cinema.

Os esforços humanos, antes de tudo, se resumem numa tentativa desesperada de superar a morte. Tudo se resume a isso. O homem tentando vencer a morte, a todo o custo. Por isso a sacada do jogo de xadrez com a morte, por si só, é espetacular, digna de um gênio. A humanidade trava uma batalha contra a morte, e qualquer custo tenta vence-la. Mas não consegue. Este é um grande ponto do filme. Até hoje o homem nunca venceu a morte. Isso fica claro na história quando a morte aceita gratamente o desafio, mas admite que jamais perdeu. Não é Block contra morte, mas o ser humano contra a morte, usando toda a sua inteligência e capacidade para vencê-la.

No caso específico de Block, contudo, o seu objetivo não é continuar vivo, simplesmente. A maior angustia do cavaleiro não é morrer; é morrer sem saber porque viveu. Maior que a angustia da morte em si, é a angustia da ausência de sentido da vida. Block não quer morrer sem saber a razão da sua existência. Ele quer descobrir o sentido da vida, ou, se a vida tem algum sentido, custe o que custar. E ele entende que o sentido da vida se resume na resposta sobre a existência de Deus.

Se Deus não existe, não há sentido a procurar. A vida não tem qualquer sentido. Realmente o destino humano é trágico e não há razão para qualquer esperança ou aspiração. O fiel escudeiro de Block está certo em seu humor negro, em sua acidez, em não se preocupar com estas questões. Não há o que se preocupar simplesmente porque não há nada. Porém - e esta é a grande questão! - se Deus existe, a vida tem um sentido, e consequentemente a morte. O cavaleiro não quer morrer sem ter uma resposta acerca do mistério divino.

Então, para descobrir o sentido da vida, lança-se em sua busca desesperada por Deus. Cansado das mesmas respostas rasas e enganosas do clero, o cavaleiro quebra todos os protocolos a procurar as respostas sobre o mistério divino nos personagens mais impensáveis até então, como uma suposta bruxa prestes a ser queimada na fogueira ou uma simplória família de artistas ambulantes. Nem mesmo a Morte escapa as perguntas do cavaleiro. O único jeito de vencer a morte é descobrindo o sentido da vida. É descobrir se Deus existe. É isso que ele tenta fazer.

Assim, enquanto está vivendo, procurando, e buscando a Deus, ele está jogando. E é provável que é por isso que não se mostra lance algum no filme: o jogo de xadrez é a metáfora da própria vida, do homem lutando para descobrir o mistério da vida através da sua racionalidade, enquanto o seu tempo se esvai por entre os seus dedos e a morte se aproxima cada vez mais.

Porém, não há resposta. Ninguém tem uma resposta. O silêncio continua. O silencio é a única resposta que ele encontra. A única certeza inexorável que o cavaleiro consegue ter é a certeza da própria morte, cuja expressão é simbolizada por Bergaman com a presença corpórea da Morte no filme. Enfim, a película termina sem as repostas, para o desespero do telespectador, e também do cavaleiro Antonius Block. Também, não poderia ser diferente: ninguém tem estas respostas, e todo ser humano compartilha dessa angustia existencial do cavaleiro.

A despeito de todas as particularidades do filme que poderiam ser comentadas, dos diálogos marcantes, dos enquadramentos fabulosos, e da metáfora sensacional do jogo de xadrez com a morte, talvez o detalhe mais extraordinário que eu tenha percebido seja o próprio título do filme, extraído do texto sagrado do apocalipse, na Bíblia cristã:

“E, havendo aberto o sétimo selo, fez-se silencio no céu por quase meia hora”.
Apocalipse 8:1

Sem dúvida nenhuma o filme não trata sobre o a hipocrisia das Cruzadas cristãs, sobre a inexorabilidade da morte, ou sobre a absurda mentalidade religiosa da Idade Média na época da peste nera. O filme trata sobre o silencio de Deus, a angustia que, segundo os biógrafos de Bergman, o assombrou ao longo de toda vida. Onde está Deus? Porque ele não se revela? Se ele existe (e Bergman parece com todas as forças querer acreditar que sim) porque Ele permanece em silencio em relação ao propósito da vida, o sentido do sofrimento, a razão da nossa existência? O silêncio de Deus é o maior dos martírios humanos.

É por isso que o paralelo do filme com o apocalipse é absolutamente espetacular. Cada selo, no apocalipse, trazia um flagelo que atingia a humanidade. Mas no último selo, o sétimo, não houve flagelo algum: apenas o silêncio. O silêncio de Deus é o pior dos flagelos.

A grande verdade que o filme desenvolve é que, apesar de muitos grupos advogarem o contrário, o homem vive na mais completa ignorancia acerca de Deus, da sua origem e do propósito da existencia humana. E por mais incrível que pareça, quando numa cena chave do filme Antonius Block questiona a própria Morte sobre a existência de Deus, e contempla o seu silencio diante da pergunta, Bergman parece querer deixar no ar seu trágico palpite: talvez nem mesmo a Morte possua o conhecimento sobre o mistério divino.

Mas o texto de apocalipse diz que o silencio foi de "quase meia hora". O silencio tem um tempo determinado. Existe um um faixo de esperança. E assim o filme não termina com uma nota pessimista, como alguém poderia supor. Dois detalhes se destacam. O casal de artistas são os únicos que sobrevivem diante da morte. E Block morre orando a Deus.

No primeiro detalhe parece que estamos a presenciar uma insinuação de Bergman sobre onde ele suspeita estar o sentido da vida; ou, como ele suspeita que a vida deve ser vivida, embora ele mesmo não consiga. É possível perceber a inveja que o autor sente das pessoas que simplesmente celebram a vida como um presente, celebram o encontro, a natureza, e desfrutam a vida de maneira leve e humilde, como o casal de artistas fazia, com o seu pequeno filho. Sutilmente Bergman parece insinuar que há algo de especial e misterioso nestas pessoas, que apenas celebram a vida com simplicidade e alegria. E isso se destaca, sobretudo quando Block celebra o momento feliz ao lado do casal, criando um memorial para se lembrar daquela ocasião, numa cena cheia de simbolismo que parecia mais uma alusão à Santa Ceia do Senhor. O sentido da vida talvez não possa ser explicado racionalmente, mas possa ser vivido.

Também é significativo que o cavaleiro, com a sua racionalidade, não encontra respostas; os clérigos, com sua religião, não oferecem respostas; mas o artista simples, aparentemente até bobo, é quem parece estar mais próximo de Deus, e tem aquilo que mais poderíamos aproximar às respostas, que Block tanto procura, ou a pistas do mistério divino.

O segundo detalhe é a oração de Block antes de ser levado pela Morte. Mesmo sem respostas, mesmo totalmente no escuro, ele se recusa a aceitar o caminho do ceticismo do seu escudeiro. Ele continua acreditando. Mesmo diante do pior dos flagelos, o silêncio de Deus, a sua completa ausência, ele continua tendo esperança. Talvez não haja melhor definição para a fé: aquele que continua buscando apesar de não encontrar respostas e nem sentido.